Luciano Pires: "Um dia minha empregada veio me pedir que comprasse um tal spray para passar roupas. Vi o anúncio na tevê e fiquei pasmo: o tal spray continha água, para umedecer a roupa antes de passar o ferro. Ou seja, os desgraçados estavam vendendo “água em spray”! Isso vem ao caso, aqui? Vem. Outro dia assisti a um anúncio na tevê conclamando incautos a comprarem uma tal “iogurteira”. Marketing é realmente genial. Estavam vendendo uns copinhos com uma travessa tampada, com direito a uma receita. Ou seja, estavam vendendo caríssimo uns copinhos baratos – e uma idéia. A idéia é a de fazer coalhada (que não é iogurte porque não utiliza coalhos químicos) em casa. E coalhada se faz facilmente em casa, sem frescuras e sem copinhos – ao baixíssimo custo de, digamos, um ou dois litros de leite para um ou dois litros de coalhada.
A coalhada, típica de todo o Oriente Médio, é resultado da fermentação empiricamente controlada do leite – originariamente de cabras. É obtida basicamente da cuidadosa cultura de bactérias, mas diferencia-se claramente do que se conhece por leite talhado ou por iogurte. Não deve jamais ser examinada ao microscópio, sob pena de provocar ojeriza intermitente no observador. Apresenta, outrossim, aspecto externo de agradável pureza e oferece sabor inigualável – além de provocar reações de indelével frescor nos que a ingerem. Pode ser obtida com facilidade, mesmo a partir de mero e prosaico leite de vaca, conforme os seguintes procedimentos:
1) Ferva o leite (leite tipo A ou B, jamais tipo Longa Vida)
2) Passe o leite fervido para um pirex com tampa
3) Deixe que o leite esfrie até que fique morno (em dias frios, um pouco mais quente do que morno)
4) Dissolva uma ou duas colheres de sopa de coalhada nesse leite morno, mexendo bem
5) Tampe e embrulhe o recipiente em grossa camada de papel ou em um cobertor (mais fácil deixar dentro de um isopor tapado)
6) Deixe descansar por no mínimo 7 horas – sem que haja qualquer tipo de oscilação
7) Destape o recipiente e deixe esfriar
Atenção: Não permita jamais que fariseus insensíveis (geralmente italianos e mineiros) contraponham a esta receita a abominável prática de se talhar o leite com gotas de limão ou 'engrossá-lo' com leite em pó ou amido de milho, já que tais procedimentos, além de profundamente heréticos, beiram as raias do mau-gosto em termos de historicidade e respeito às tradições.
OBSERVAÇÕES PERTINENTES
a) Para se criar uma coalhada, é preciso ter o “coalho” (ou seja, um pouco da coalhada que se fez anteriormente). Tal qual a história do ovo e da galinha, nem o mais ortodoxo Catolicós (o “Papa” dos armênios), ou o próprio Noé saberia explicar as origens do Primeiro Coalho. Teria, esse Coalho Primordial, esse Coalho Primevo, sido o “Ser-Em-Si-Imanente-ao-Big-Bang?” Ou, apenas, o “Sumo Supremo” rescendente de papíricas pororocas armênias, sírias, árabes ou libanesas resultantes da confluência do Tigre e do Eufrates, se é que confluem? Eu, pessoalmente – na crença de ser possuidor desse direito, como descendente de tão milenares tradições gustativas – costumo usar como coalho um mero e herético pote plástico de iogurte natural (nem tão natural, mas ao menos sem quinquilharias como morangos, mel etc.) jamais desnatado ou diet, desses que são encontrados, infelizmente sem qualquer dimensão épica da tradição, em qualquer gôndola de supermercado.
b) A coalhada que durante sua fermentação permanece tapada por seis ou sete horas resulta com sabor suave e aveludado; caso se pretenda uma coalhada mais picante, é preciso deixar que descanse por mais tempo: dez, doze ou quinze horas. (Como se vê, também o Oriente Médio cultiva a paciência que indevidamente se atribui com exclusividade aos habitantes do Extremo Oriente).
c) De cada vinte ou trinta coalhadas que se faz, uma ou duas “não vira” – ou seja: não “coalha”. Totalmente desconhecidas, as causas do fenômeno só podem ser especuladas: talvez algum motim de bactérias subversivas, ou resquícios de mau-humor da anônima vaca que gerou o leite – ou, quem sabe?, a ocorrência de mais um daqueles fatos que se destinam apenas a justificar estatísticas. De qualquer maneira, nesses casos perde-se todo o leite empregado – restando apenas a possibilidade de se exclamar, com a sensualidade de um turco: “Borh!” (o que, em tradução livre e honesta, significa: Bosta!). Por essas e outras, sugere-se que não se tente fazer coalhada em grandes quantidades num mesmo recipiente. Dura, inalterada, por até uns dez dias na geladeira.
USOS E ABUSOS
Coma pura, com mel, com açúcar, com frutas, com alho e sal, use em receitas para muitas vezes substituir creme de leite. É excelente também como regulador da flora intestinal (o princípio é o mesmo do Yakult). E, se quiser ter um pouquinho mais de trabalho, faça em casa (a custos baixíssimos), a famosa “coalhada seca” – para mim talvez o melhor dos patês.
COALHADA SECA
Faça coalhada com cinco litros de leite Tipo A. Num pano de aproximadamente 1 m por 1 m (costumo usar, ao invés de pano, entretela – que é depois apenas descartada), disposto sobre uma vasilha grande, despeje a coalhada já pronta. Amarre as quatro pontas do pano com nós fortes, formando uma grande trouxa. De alguma forma, tire a trouxa da vasilha e pendure com um recipiente em baixo para conter o “soro” que vai sendo coado. Eu costumo usar um isopor grande com um recipiente no fundo, e a trouxa sustentada por um pedaço de cabo de vassoura. Deixe escorrer por umas 12 horas. Depois, é só desfazer a trouxa e colocar a coalhada seca num pote. Guarde em geladeira e, para comer, tempere cada porção com muito azeite, sal, alho socado (se quiser) e hortelã seca.
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sexta-feira, 23 de abril de 2010
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